O que acontece quando um idoso pega um pincel e começa a criar?
Nunca me esqueço da primeira vez que vi uma senhora de 84 anos pintar com aquarela numa oficina comunitária. Ela tinha os olhos marejados, as mãos trêmulas e uma serenidade que eu invejei. No final da atividade, ela virou para mim e disse: “Eu me encontrei hoje.” Foi nesse dia que entendi, de verdade, o poder da arteterapia na vida dos idosos. Não estamos falando de passatempo ou distração. Estamos falando de cura emocional, de reconexão com a identidade, de memória resgatada pelo gesto artístico.
A arteterapia é uma abordagem terapêutica que usa recursos como desenho, pintura, colagem, escultura e outras formas de expressão artística para acessar emoções, aliviar tensões e promover o autoconhecimento. Mas, para além da teoria, ela é uma experiência viva, especialmente para quem já viveu muito e sente, às vezes, que já não tem mais nada a descobrir.
Como a arteterapia melhora a saúde mental dos idosos?
Vivemos em uma sociedade que tem medo da velhice. Não só por causa do corpo que muda, mas porque temos dificuldade de aceitar que envelhecer também é um convite ao recolhimento, à escuta interior. E é exatamente aí que a arteterapia entra como ponte entre o silêncio e a palavra. Idosos que praticam atividades artísticas regularmente demonstram redução significativa de sintomas de depressão e ansiedade, além de melhora na autoestima. É um espaço onde eles podem ser ouvidos sem precisar falar, compreendidos sem precisar explicar.
A arte dá forma ao invisível. Emoções reprimidas por décadas podem finalmente encontrar saída no traço de um carvão ou na mistura de tintas sobre uma tela improvisada. E não se trata de “saber desenhar”. Aliás, o bonito da arteterapia é justamente o fato de não exigir talento, só presença.
Pode a arteterapia prevenir o declínio cognitivo?
Cada vez mais estudos apontam para a relação entre atividade criativa e preservação das funções cerebrais. Criar ativa áreas do cérebro ligadas à memória, à linguagem e à tomada de decisões. Um simples exercício de colagem pode estimular o córtex pré-frontal mais do que se imagina.
Ao trabalhar com imagens, formas e cores, o idoso é desafiado a organizar ideias, fazer escolhas e resolver problemas – tudo isso de maneira prazerosa. A arte mantém o cérebro em movimento, e isso pode retardar o avanço de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Em alguns casos, ela até ajuda a resgatar lembranças que pareciam perdidas.
Por que a arteterapia fortalece os vínculos sociais?
Não é raro que idosos enfrentem o isolamento. Amigos vão embora, a família se afasta, a rotina fica mais silenciosa. E o silêncio pode virar abismo. Oficinas de arteterapia em grupo oferecem um espaço de convivência leve, sem pressão, onde a troca acontece de forma orgânica. Ali, a arte vira linguagem comum, ponto de encontro, motivo para rir junto, compartilhar histórias e experiências.
Já vi grupos onde um idoso começava a desenhar e outro, do outro lado da sala, reconhecia o traço e puxava conversa. A arte reacende o desejo de estar com o outro, e isso é precioso. O sentimento de pertencimento é, muitas vezes, mais curativo do que qualquer remédio.
Quais os impactos físicos da prática artística?
Engana-se quem pensa que a arte só mexe com o emocional. Pintar, modelar argila, recortar papel… tudo isso exige coordenação motora fina, controle dos movimentos, postura. Muitos profissionais da saúde já reconhecem a arteterapia como aliada em processos de reabilitação física, especialmente após AVCs ou cirurgias.
Além disso, a prática frequente pode melhorar a flexibilidade das mãos, ajudar no controle do tremor em casos de Parkinson e até mesmo estimular a respiração de forma mais consciente em atividades como a pintura ou a caligrafia oriental. O corpo agradece esse movimento gentil, cheio de sentido.
Como a arteterapia resgata a identidade do idoso?
A velhice pode ser cruel com a identidade. Aposentadoria, luto, mudanças no corpo – tudo isso pode levar à sensação de perda do “eu”. A arte, nesse contexto, funciona como um espelho simbólico. Ao criar, o idoso se vê de novo. Se reconhece. E, muitas vezes, se reinventa.
Tenho lembranças de sessões em que o participante começava a contar histórias do passado enquanto colava recortes. A arte traz de volta memórias, contextos, emoções – e isso ajuda o idoso a reconstruir sua narrativa, a perceber que sua vida ainda é cheia de capítulos possíveis.
Arteterapia e espiritualidade: qual a conexão?
Não falo de religião, mas de algo mais profundo: o sentido. Muitos idosos se perguntam “por que ainda estou aqui?”. E a arte, curiosamente, ajuda a encontrar essa resposta. Criar é um ato de fé. É lançar algo ao mundo e confiar que aquilo tem valor.
Em processos arteterapêuticos, temas como morte, tempo, legado e transcendência surgem com naturalidade. O idoso pode expressar sua espiritualidade através da criação – uma mandala, um bordado, uma pintura abstrata cheia de símbolos. A arte se torna então um instrumento de transcendência.
Existe lugar para a arteterapia nos cuidados paliativos?
Sim. E não só existe, como deveria ser regra. A arteterapia em cuidados paliativos é um bálsamo. Ajuda o idoso a lidar com a dor, o medo, o fim. Mas também permite que ele deixe algo de si no mundo – uma carta, uma pintura, uma escultura que fale de sua passagem. É um gesto de eternidade.
Tenho visto trabalhos lindíssimos nascerem em contextos de despedida. A arte vira despedida amorosa, registro do que não cabe em palavras. Nesses casos, ela cuida da alma enquanto o corpo se despede.
E quando o idoso tem limitações físicas ou cognitivas severas?
A beleza da arteterapia está em sua capacidade de adaptação. Não importa se a pessoa não fala, não vê, não escuta ou não movimenta bem as mãos. Há sempre um meio de expressão possível. Texturas, sons, cores, formas tridimensionais – tudo pode ser adaptado.
Já participei de sessões com idosos acamados que pintavam com os pés, ou com olhos que apenas seguiam as cores projetadas na parede. A expressão artística não depende da técnica, mas da presença. Mesmo em silêncio, o idoso pode se fazer ouvir.
Por onde começar a introduzir a arteterapia na vida de um idoso?
Você não precisa ser terapeuta ou artista. Basta criar um espaço seguro, com materiais simples: papel, lápis, revistas velhas, tintas, argila. Convide o idoso a criar sem julgamento. Acompanhe, escute, celebre cada traço. Se possível, procure profissionais especializados – muitos centros de saúde e ONGs já oferecem oficinas gratuitas.
A arte é porta aberta. Um convite ao reencontro. E, com ela, os anos deixam de pesar e voltam a contar histórias.
A arteterapia pode transformar o cotidiano do idoso?
Sim, e essa transformação não é teórica — ela é vivida, dia após dia. Quando um idoso se envolve com atividades artísticas de forma contínua, a rotina deixa de ser só uma sequência de remédios, consultas e televisão. Ela ganha cor. Ganha intenção. A arte quebra a monotonia, rompe o ciclo da repetição sem sentido e devolve ao idoso o direito de se surpreender.
Já vi idosos que antes mal saíam do quarto começarem a esperar ansiosamente pela oficina da semana. Já vi outros pedirem pincéis e tintas para continuar em casa. Isso não é “ocupação do tempo”, é reconquista do tempo vivido com prazer. Pequenas mudanças no cotidiano geram grandes impactos na qualidade de vida: mais energia, mais disposição, menos queixas físicas.
E quando o idoso cria uma rotina artística, ele também começa a se planejar — para o próximo projeto, para a próxima cor, para o próximo encontro. Isso dá sentido ao tempo, ao espaço, ao próprio envelhecer.
Arteterapia é coisa de mulher? Ou também serve para os homens?
Essa é uma pergunta mais comum do que deveria. Existe um preconceito silencioso de que arte é algo mais “feminino”, e por isso muitos homens idosos resistem à ideia de participar de oficinas artísticas. Mas isso muda — e muda rápido — quando eles descobrem que a arteterapia não é sobre fazer algo “bonito”, e sim algo verdadeiro.
Homens que passaram a vida toda sendo ensinados a não demonstrar sentimentos encontram, na arte, uma forma de expressão que não exige palavras. E isso é libertador. Muitos se emocionam com o primeiro desenho, o primeiro poema, a primeira escultura. Outros se encantam com técnicas como a xilogravura, a escultura em madeira, o grafite. A arte não tem gênero, e o sofrimento emocional masculino também não. Todos precisam de espaço para se expressar.
A arteterapia pode ajudar os cuidadores também?
Sem dúvida. Cuidar de um idoso é um trabalho de corpo e alma. É comum que cuidadores (sejam familiares ou profissionais) desenvolvam estresse, esgotamento e até depressão. Introduzir a arteterapia como uma atividade compartilhada entre idoso e cuidador pode ser uma forma de aliviar essa carga emocional.
Além de fortalecer o vínculo, a criação artística conjunta promove momentos de leveza, de conexão autêntica, de descanso simbólico. É um intervalo onde ambos saem do papel de quem cuida e de quem é cuidado, e passam a ser simplesmente seres humanos criando juntos. Já ouvi cuidadores dizendo que os momentos de arteterapia eram os únicos em que conseguiam respirar fundo.
O que ainda falta para a arteterapia ser reconhecida como essencial?
Falta coragem institucional. Ainda vemos a arteterapia sendo tratada como atividade “complementar”, quando ela deveria ser parte central das políticas públicas de atenção ao idoso. Falta formação, falta investimento, falta divulgação. Mas o mais importante: falta abrir espaço no coração e na mente para a ideia de que a arte pode, sim, ser remédio.
Não remédio no sentido químico, mas no sentido mais ancestral da palavra: algo que cuida, que reconecta, que devolve sentido. Em tempos em que tanto se fala de humanização do cuidado, talvez seja hora de parar de falar e começar a oferecer pincéis, argila, papel, tinta e liberdade.
Porque no fim das contas, a arteterapia não é sobre fazer arte. É sobre ser arte em movimento, mesmo aos 70, 80, 90 anos. E isso, meus amigos, não tem preço.